Como pesquisador de arquivos e correspondências entre escritores e intelectuais, estou muito acostumado a lidar e manusear o objeto “carta — afinal, já são 25 anos inteiramente devotados à pesquisa no âmbito da epistolografia, ciência literária que investiga e problematiza epístolas e outras variantes do chamado gênero epistolar. Todavia, há muitos anos que eu não recebia uma carta manuscrita, enviada e postada para mim. Tal foi o meu assombro quando, dias atrás, recebi uma missiva para mim, escrita e pensada para mim, o que me leva a lhe perguntar, caro leitor: você já recebeu uma carta?
Pode parecer uma pergunta um pouco sem nexo, mas que tem sentido! Ainda mais se pensarmos que a atual geração — virtualizada e eletrônica por natureza — certamente nunca viu uma carta, nunca provou a sensação única e maravilhosa de ficar esperando o carteiro passar e entregar as nossas correspondências. Mais do que isso, a expectativa da resposta, a ânsia de receber alguma informação do amigo, da paixão, do familiar distante. Com a carta, não chegavam apenas informações e notícias, mas também o próprio remetente “se enviava”, ou seja, era comum recebermos cartas perfumadas, beijadas com marcas de batom, recortadas, com desenhos, colagens e outras formas de presença e marcas do remetente.
A carta que recebi foi enviada por um aluno do doutorado em História da Universidade de São Paulo (USP). Ele comprou e leu o meu livro Correspondência Mário de Andrade & Alceu Amoroso Lima (Edusp, 2018), que apresenta 76 correspondências inéditas trocadas entre o autor de Macunaíma e o grande crítico literário e pensador católico. Meu leitor e remetente empolgou-se com essas missivas, que mostram um Mário de Andrade atormentado com dúvidas religiosas e existenciais, as quais são partilhadas com Alceu Amoroso Lima, que acolhe e tenta amenizar a dor que Mário sentia em sua alma: este último era católico de coração, mas, a despeito da crença em Deus, tinha uma verdadeira aversão pela Igreja Católica enquanto instituição.
Meu leitor e remetente escreveu uma bela e longa carta com as impressões causadas pela leitura desse meu livro, mas, sem saber o meu endereço postal, enviou-a à editora, que logo encaminhou-me. Recebi-a com imensa surpresa e li essa missiva umas dez vezes seguidas, pois, a cada leitura, uma série de sentimentos e sensações eram despertados — uma total nostalgia de um passado um tanto recente, quando era comum recebermos cartas dos nossos amigos e familiares. Pessoalmente, além de pesquisador do gênero epistolar, também fui um bom epistológrafo, isto é, um escritor de cartas. Fui membro de vários clubes de amizades por correspondência. O meu nome e o meu endereço foram publicados em diversas revistas desses tais clubes, o que me proporcionou grandes amizades que duram até hoje em dia, mais de 30 anos depois!
Tentei colocar-me no lugar dos escritores brasileiros cujos epistolários eu já havia pesquisado e publicado a respeito: Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Carlos Drummond de Andrade, Alceu Amoroso Lima, José Américo de Almeida, Paulo Francis, Frei Betto, Leonardo Boff e tantos outros. Como foi para eles receber e enviar cartas? Como era pensar por meio das linhas de folhas, de papéis às vezes timbrados ou simplesmente um telegrama? Aliás, meu caro leitor, você já ouviu falar em telegrama, aerograma e cartões postal e aeropostal? São as várias tipologias textuais que compunham o intricado sistema postal que, durante tantos anos, proporcionou a comunicação entre as pessoas que estavam distantes entre si.
Toda carta precisa de uma resposta, pois quem a envia o faz já pensando em também receber resposta. Respondi. Segui toda a liturgia da epistolografia: escrevi o texto, revisei, passei a limpo, envelopei, fui à agência dos Correios, selei, postei e rezei para que não se perdesse e chegasse até o meu destinatário. O assunto? É segredo, pois este é parte dessa mística epistolar que garante a inviolabilidade da amizade entre remetente e destinatário e do mundo de informações e sensações compartilhadas via Correios e Telégrafos — e, afinal, você sabe o que é um telégrafo?
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