Turismo remarcado

28 de outubro de 2024

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Meia década depois de entrar em discussão no Congresso, a atualização da Lei Geral do Turismo foi, enfim, sancionada pelo governo federal, há pouco mais de um mês. Demanda inequívoca de um setor que está perto de faturar R$ 200 bilhões por ano, com efeitos que reverberam por toda a economia, as novas regras mudam substancialmente o texto anterior, em vigor desde 2008, passando ainda por uma extensa revisão de outras legislações que cruzam os rumos do Turismo brasileiro.

Relatório do Ministério do Turismo (Mtur), ao qual a PB teve acesso, mostra que foram quase 150 regras alteradas no escopo da antiga Lei Geral do Turismo, enquanto outras 26 foram revogadas. Na mesma toada, cerca de 170 dispositivos legais foram reescritos entre marcos, códigos e leis. “Apesar de os vetos do Executivo, no último momento, terem sido surpreendentes, o processo todo foi realizado de forma bastante colaborativa”, avalia o economista Guilherme Dietze, que preside o Conselho de Turismo da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), grupo que reúne dezenas de empresas do setor pelo País. “O texto contempla desde as contribuições de pequenos empreendedores — aqueles que atuam fornecendo serviços na ponta das experiências turísticas — até as grandes marcas. Tudo isso com apoio de entidades representativas, como a própria Federação, e da sociedade civil organizada”, detalha.

O veto apontado por Dietze diz respeito à retirada, na última hora, do dispositivo que limitava a responsabilidade solidária de agências de turismo e meios de hospedagem. Na lógica pela qual foi criado, funcionaria como um mecanismo estabelecendo que cada parte da cadeia turística seja responsabilizada apenas pelos serviços que presta diretamente. Em outras palavras, era um jeito de evitar que negócios transversais fossem prejudicados em episódios assim. No cotidiano do Turismo, é uma situação que costuma acontecer entre companhias aéreas e hotéis, por exemplo. O veto “impõe rigidez nas operações, sobretudo de meios de hospedagem. Vai obrigá-los a estruturar processos internos para evitar punições”, analisa a advogada Giovanna Ghersel, que faz assessoria de Relações Governamentais para o escritório Lima & Volpatti, sediado em Brasília. “Isso afeta relações comerciais entre hotéis e outros prestadores, como as agências de turismo”, aponta.

Altos e baixos

Durante o processo de elaboração do novo marco, o Turismo brasileiro viveu altos e baixos. Em 2020, no primeiro ano da pandemia de covid-19, o setor perdeu, imediatamente, mais de um terço do seu faturamento anual (-36,7%) em relação ao ano anterior, segundo dados da FecomercioSP. Em meio às políticas adotadas pelos governos estaduais para restringir mobilidades e aglomerações — e, assim, tentar conter a disseminação do coronavírus —, a atividade econômica foi uma das mais afetadas. As medidas significaram cancelamentos de voos e fechamentos de hotéis e restaurantes, além de interrupções totais de destinos turísticos por meses.

No ano seguinte, o setor chegou a melhorar as receitas (alta de 12%), somando um montante de R$ 152,4 bilhões, embora ainda muito abaixo do patamar de 2019. As coisas só começaram a melhorar, efetivamente, em 2022, quando as restrições da pandemia foram afrouxadas pelos governos e, então, os destinos turísticos foram abertos parcialmente. No fim daquele ano, o Turismo nacional registrou um faturamento de R$ 189,4 bilhões, o que representou uma elevação de significativos 32,5% em comparação ao ano anterior. Hoje, o setor está “bombando”, com faturamento de aproximadamente R$ 130 bilhões somente entre janeiro e agosto deste ano — um crescimento de 2,6% em relação ao mesmo período de 2023. As receitas brutas de agosto (R$ 16,6 bilhões) foram as maiores para o mês desde 2019. “Não há dúvida de que estamos vendo um ritmo sólido de expansão, que está acompanhando a dinâmica positiva da economia do País”, observa Dietze, da FecomercioSP.

Novo marco legal

O texto da nova Lei Geral do Turismo é quase outro, se comparado ao anterior, de 16 anos atrás. Dentre as várias alterações, as entidades do setor têm destacado pontos como o reconhecimento de albergues (hostels) como meios de hospedagem; a regulamentação do trabalho em águas internacionais a partir de regras da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o que impacta as operações de cruzeiros; a autorização do uso de recursos do Fundo Nacional da Aviação Civil (Fnac) para que as companhias áreas renovem as frotas; e a inclusão de parques temáticos como prestadores de serviços turísticos.

Especialistas ouvidos pela PB ao longo desta semana elencam outras mudanças relevantes. É um consenso, por exemplo, que foi uma conquista importante a entrada de produtores rurais na lista de prestadores de serviços turísticos. “Isso vai fazer muita diferença para o nosso Turismo”, comemorou, Pedro Rigo, diretor superintendente do Sebrae no Espírito Santo. “Até porque a base do estado é toda no Agroturismo”, prosseguiu. Entidades de Estados como Paraná, no Sul, e Rondônia, no Norte, também elogiaram a medida pelo mesmo motivo.

Outro avanço, segundo os especialistas, é a previsão de aumentar estímulos para as comunidades tradicionais em diferentes atividades do setor, o que consta de forma detalhada no novíssimo Plano Nacional de Turismo (2024–2027). A criação do Mapa do Turismo Brasileiro, que categoriza municípios com potenciais turísticos, por sua vez, é apontada como uma transformação com mais impactos orçamentários. “Vai facilitar muito a distribuição dos recursos públicos destinados ao Turismo, promovendo um ambiente mais democrático”, ressalta Giovanna, do Lima & Volpatti.

Dietze elencou quatro pontos fundamentais da nova lei, cujos reflexos já serão sentidos a partir de agora.

  • Desburocratização

Ponto não tão comentado nas análises posteriores à aprovação do marco — e pouco citado pelas fontes ouvidas pela reportagem — é o conjunto de medidas que devem desburocratizar as atividades de Turismo de agora em diante. O próprio reconhecimento das associações privadas como prestadoras de serviços turísticos, a exemplo dos produtores rurais, veio junto com regras mais flexíveis para fazer o cadastro na base de dados do MTur.

Da mesma forma, a mudança no conceito do preço do serviço fornecido pelas agências deve dar mais segurança jurídica ao setor. Dietze, inclusive, acredita que essa é a palavra-chave da modernização que esse marco legal produziu. “Se tem algo que atravessa a discussão que terminou nessa legislação é, justamente, a segurança jurídica que as empresas precisam ter para investir, contratar, pensar no futuro, aumentar as atividades, ampliar escalas etc. O Turismo nacional tem muitas dificuldades com isso — as quais devem ser mitigadas agora”, assegura.

Mas não só: na análise de Dietze, essa robustez institucional também terá efeitos sobre o cotidiano dos players do setor. “Muitos dispositivos foram alterados para facilitar a elaboração de cadastros, flexibilizar regras muito rígidas ou regulamentar práticas que, ainda que já fizessem parte da regulamentação, ainda não estavam mapeadas como lei”, detalhou.

  • Novos atores turísticos

Assim como boa parte dos especialistas ouvidos pela reportagem, o economista ressalta que o reconhecimento de produtores rurais e de escala familiar como prestadores de serviços turísticos é um dos maiores avanços mais da nova legislação. Na prática, o dispositivo abre caminho legal para que essas pessoas desaguem os produtos que comercializam em regiões onde haja circulação relevante de turistas (ou em cidades potenciais), sem que percam a condição de produtores rurais — o que, do ponto de vista legal, garante uma série de benefícios específicos.

Segundo interlocutores do MTur ouvidos pela PB, a medida será relevante em áreas do Nordeste e do Norte do País, onde há uma série de destinos turísticos cercados por comércios alimentados por varejo de pequena escala, ou em áreas circunscritas no chamado agroturismo ou turismo rural, que atravessam  Estados como Goiás até regiões de São Paulo, como o Vale do Paraíba.

De acordo com Dietze, o ponto importante é que a regra tende a mudar o cotidiano de muitas economias locais. “O turismo rural é muito forte em boa parte do Brasil. São fazendas, sítios, áreas com animais, lagos, entre outros, que muita gente procura para levar os filhos pequenos, mas não têm reconhecimento legal. Isso dificulta os investimentos e até a abertura de espaços semelhantes. Nesse sentido, a mudança na lei vai oferecer a segurança jurídica que essas empresas demandavam há muito tempo”, exemplifica. “Sem contar que muitas cidades vão se beneficiar, na medida em que já contam com uma vocação para esse tipo de turismo”, completa.

  • Agências e segmentos fortalecidos

Os mecanismos que regulam o trabalho das agências de turismo foram os que passaram por mais ajustes. Dentre várias revisões, o texto sancionado agora estipulou, por exemplo, limites para o pagamento de multas por eventuais alterações ou cancelamentos de serviços prestados. Ao mesmo tempo, ampliou o campo de atuação dessas empresas, permitindo que atuem também na organização, na contratação e na operação de atividades paralelas aos pacotes que já vendem. “Na prática, as agências até já faziam isso”, explica. “Esses negócios faziam parcerias com outras empresas, fornecedoras de serviços que compõem a experiência local, e até mesmo emitiam notas fiscais em cadastros diferentes, mas controlando essas ações. O marco apenas regulamentou isso, novamente fornecendo uma maior segurança jurídica”, segue Dietze.

Outra medida bastante comemorada pela Federação foi a regularização das 220 agências de turismo social espalhadas por 23 unidades do País e administradas pelo Sesc. Dietze destaca que esta foi uma decisão oportuna, porque essa instituição promove um conjunto de atividades socialmente relevantes. “Uma das maiores redes hoteleiras do Brasil é a do Sesc, que oferece preços mais baratos e acesso a experiências focadas nesse caráter educativo e social. Regularizar esse grande motor do Turismo brasileiro é um acerto”, enfatiza.

A análise de Dietze também vai no sentido de ressaltar que não apenas as agências saíram fortalecidas, mas também os segmentos que têm ajudado a dar a tônica do bom momento. É o caso dos cruzeiros. Agora, as empresas que administram essas viagens poderão lidar com regras mais claras sobre a contratação de pessoas para trabalhar durante os percursos, em águas nacionais e internacionais. Dados da Associação Brasileira de Cruzeiros Marítimos (Clia Brasil) mostram que, só na temporada 2023–2024, a indústria injetou R$ 5,2 bilhões na economia, somando 80 mil empregos formais.

“Para o segmento, a burocracia ficou menor, mas não os gastos. Serviços como atracação e praticagem, por exemplo, ainda são bem caros”, enfatiza Dietze. A indústria de cruzeiros faz críticas semelhantes. “Se os custos operacionais não baixarem, o País, além de não atrair novos navios, ainda pode perder os que estão aqui para as temporadas futuras”, alertou o presidente da Clia, Marco Ferraz, em evento com as empresas do setor realizado em setembro, em São Paulo.

  • Reforço ao setor aéreo

Por fim, dentre os atores mais interessados nas mudanças da legislação, estavam, sem dúvida, as companhias aéreas. Isso principalmente por causa da possível destinação de recursos da Fnac para custos operacionais específicos ou para investimentos.

O texto final da lei contemplou essa agenda, e, a partir de agora, o fundo da Anac poderá ser destinado para despesas como querosene de aviação (QAV) em aeroportos dentro da Amazônia Legal e para custear projetos de combustíveis renováveis. Além disso, o texto permite que esse dinheiro também seja usado para aumentar o número de destinos nacionais contemplados nas operações e para eventuais empréstimos com o objetivo de renovar as frotas, o que é interessante para as empresas de aviação.

Dietze afirma que essa nova regra tende a aumentar investimentos e gerar crescimento sustentável para o setor aéreo. Ele lembra, sobretudo, da relevância que a aviação civil representa no universo turístico, já que é a partir dessa atividade que as demais experiências do turista se estabelecem. Mas o otimismo tem limite. “Nesse caso, o marco vai ajudar, mas não resolver o problema”, lamenta. “De um lado, tende a diminuir de alguma forma os preços para os consumidores, além de fazer uma ligação mais razoável da Amazônia com o restante do Brasil. De outro, porém, os problemas continuam: alta judicialização, impostos altos etc. Mas, no geral, é um recurso bem-vindo”, conclui o economista.

Apesar de a nova Lei Geral do Turismo já estar em vigor, deve passar ainda por outra cerimônia simbólica em breve. No mesmo dia em que o governo lançou as regras, foi assinado também um acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU) para a abertura de um escritório regional da ONU Turismo no Rio de Janeiro, no ano que vem. Será a primeira unidade do órgão nas Américas e no Caribe.

Vinícius Mendes Annima de Mattos
Vinícius Mendes Annima de Mattos