As férias de julho chegaram. E, neste ano, além de notas, processos pedagógicos e o início do merecido descanso para alunos e educadores, há mais um balanço a ser feito: como foi o primeiro semestre sem celulares nas escolas brasileiras? Entre os especialistas, há um consenso. Embora, como toda novidade, a medida ainda demande ajustes, a mudança é positiva. Para muitos, cumprir a lei foi até mais fácil do que o previsto. A proibição, contudo, está longe de ser uma panaceia para a educação brasileira, mas permitiu que o foco se voltasse para tantas outras ações necessárias.
Diretor da Escola Estadual Padre Saboia de Medeiros, na zona sul de São Paulo, Vilson Giron conta que fazia mais de um ano que toda a equipe docente buscava conscientização para tirar os celulares das salas de aula. “Era visível que o uso excessivo causava uma falta de foco durante as aulas. Em classe, a gente pegava no pé, mas nos intervalos os aparelhos estavam liberados”, relata. Quando a legislação federal foi promulgada, proibindo o uso também nas pausas entre as aulas, a escola logo iniciou conversas com estudantes e familiares.
“Chamamos uma reunião de pais e eles tinham muitas dúvidas, estavam preocupados com a possibilidade de os filhos não poderem entrar na escola com celular. Explicamos que poderiam trazer, mas não usar o aparelho”, recorda Giron. Segundo o diretor, conversar com os alunos, envolver o grêmio estudantil, explicar os malefícios do excesso e, sobretudo, fazer combinados, foram as estratégias para que os estudantes aceitassem a mudança com mais tranquilidade.
Na escola — que atende cerca de 300 estudantes do sexto ano do fundamental ao terceiro ano do ensino médio —, há armários individuais, cada um com a própria chave, o que facilitou a logística. “Ninguém precisa tirar o celular do aluno, eles se responsabilizam por deixar no armário na hora da entrada. Fiquei surpreso, sobretudo com a interação deles nos intervalos, que aumentou muito. Tem mais gente jogando bola, interessando-se pelo xadrez”, revela Giron.
Ficar sem o celular exigiu ajustes nas rotinas, mesmo em colégios particulares. Afinal, os aparelhos estavam na vida dos estudantes não apenas para diversão — são relógios, calculadoras, máquinas fotográficas, tocadores de música e, até, meio de pagamento ou de transporte para o uso de carros por aplicativo. Teve aluno que, pela primeira vez, foi ao banco pedir um cartão de débito físico para pagar a cantina. “Mas foi mais fácil do que imaginava, até porque houve consenso com as famílias de que, como estava, não era legal”, pontua Luciana Fevorini, diretora do Colégio Equipe, também na capital paulista.
Com as novas regras, no início do ano letivo, a orientação foi para que os professores evitassem usar o celular mesmo para atividades didáticas. A ideia era ajudar os estudantes a se desintoxicarem, que eles aprendessem que são capazes de passar longos períodos longe dos aparelhos sem qualquer problema. E o interessante é que os próprios adolescentes perceberam mudanças positivas. “Eu fiz um questionário para as turmas do nono ano, e elas disseram que agora interagem mais, passam menos tempo nas redes sociais e se sentem menos dependentes e mais produtivas”, descreve a diretora.
Ainda não existe um estudo nacional sobre como anda a aplicação da lei pelo País. O Ministério da Educação (MEC) tem produzido e divulgado materiais para ajudar as escolas a lidarem com a proibição, de roteiros de reunião a planos de aula para abordar o tema. Até meados de junho, o material foi acessado 86 mil vezes. A Secretaria de Educação do Estado de São Paulo informa que fez um levantamento na sua rede — a maior do Brasil —, mas que tem usado os dados apenas internamente para planejar ações de conscientização e não pretende divulgá-los num futuro próximo.
Mesmo diante de dados objetivos, a percepção de quem trabalha na área de Educação é de que há um esforço real para tirar o celular das escolas. “Eu atuo no Brasil inteiro e vejo que as escolas estão aplicando a lei — e que tiraram de letra, muito mais do que imaginavam”, diz Adriana Ramos, coordenadora do curso de pós-graduação As Relações Interpessoais na Escola, do Instituto Vera Cruz, que também oferece consultorias.
A reportagem da Revista Problemas Brasileiros (PB) chegou a identificar uma escola do ensino médio em que não houve esforços para tirar os celulares das mãos dos estudantes. Ainda assim, o professor que relatou o caso notou que os próprios adolescentes mudaram certos comportamentos. “A maioria voltou a ter caderno e não fica só esperando para tirar foto da lousa”, disse o docente, que pediu para não ser identificado.
Segundo Adriana, do Vera Cruz, a surpresa foi positiva também quanto ao uso dos aparelhos pelos adultos. “Há escolas que proibiram o celular também para professores e funcionários. Inicialmente, pensei que era muito radical. Hoje, esses profissionais sentem-se menos sobrecarregados. Tem sido um alívio para eles. Se alguém da família precisar dar um aviso urgente, faz como sempre se fazia: liga no telefone da escola e alguém vai bater à porta da classe”, destaca.
Criança sem celular, no entanto, não é sinônimo de paz na escola. Mas os conflitos reais criam oportunidades para intervenções que levem a aprendizados sobre a convivência em sociedade. “Às vezes, a escola parecia um ambiente tranquilo, mas era uma calmaria falsa”, afirma Adriana. A educadora lembra de casos de bullying em ambiente virtual que levaram dois anos até estourar e os adultos saberem. “E outros em que a turma inteira estava envolvida, mas a escola dizia que não tinha responsabilidade, porque acontecia de forma virtual”, completa.
Como professor da rede municipal do Rio de Janeiro, Doug Alvoroçado embarcou na experiência da escola sem celular um ano antes, pois uma lei municipal, muito semelhante à nacional, começou a valer no início de 2024. Ele, que também é consultor de transformação digital em várias escolas de todo o País, percebe que a retirada do celular não causou grandes traumas. “Os alunos já sabiam que a escola era um lugar de fazer outras coisas, que não era um espaço de uso livre do celular”, ressalta.
Alvoroçado enfatiza, contudo, que, para melhorar o ambiente escolar, a proibição do celular é insuficiente para melhorar a educação. “Como aliado dessa política, não posso negar que houve ganhos. Mas não gosto da imagem de que agora está tudo maravilhoso, que ninguém mais se distrai, que estão todos saudáveis”, aponta. O professor defende que a escola precisa preparar os alunos para um uso positivo do aparelho — que, de uma forma ou de outra, continua na vida de todos. “A escola tem de se corresponsabilizar pelo uso consciente. Se não mostrar, por exemplo, como evitar cair em golpes no WhatsApp, quem fará esse papel?”, questiona.
A advogada Alessandra Borelli, que trabalha com Direito Digital e educação, adverte que, na rede pública, muitos alunos nem sequer têm contato com outros dispositivos digitais que possam apoiar os estudos. “Ao falar sobre restringir o uso do celular, é importante garantir que isso não signifique também limitar o acesso das crianças ao mundo digital. Há um risco de reforçar um gap de letramento digital, com uma parcela dos alunos preparada para as novas exigências do mercado, enquanto a outra fica para trás”, adverte.
Alessandra é defensora da lei e conta que, desde o fim do ano passado, tem sido chamada por escolas e redes de ensino para ajudar no processo, o que é um sinal de que há, sim, um esforço geral. E, por isso mesmo, alerta que, na hora que o celular sai de cena, o trabalho está só começando. “Vale reforçar que a educação midiática não depende necessariamente de acesso à internet ou a dispositivos digitais. Mas é importante que a política de restrição dos celulares caminhe junto com investimentos em formação docente, em estruturas tecnológicas e em desenvolvimento de competências digitais”, conclui.