Quem pesquisa o tema das desigualdades tende a perceber, mais do que em outras investigações, como a matemática é, para além de uma ciência exata, também um campo de lutas. O economista chileno Ignacio Flores entendeu isso rapidamente. Coordenador para a América Latina do World Inequality Lab (WIL) — projeto sobre sobre desigualdades sediado na Paris School of Economics (PSE), em Paris, na França —, Flores passou a última década lutando, precisamente, essas lutas.
Isso porque, de acordo com o economista, de um lado, ainda é muito difícil acessar dados da distribuição da riqueza dos Estados e produzir estudos sobre as dinâmicas socioeconômicas que atravessam a realidade desigual desses países. De outro, porque é com base em números não tão precisos que boa parte das pesquisas sobre o tema é produzida atualmente no mundo.
É por isso que, segundo Flores, a luta principal desse campo está em alcançar o fator que sustenta essa fratura socioeconômica: as dinâmicas do patrimônio. São imóveis, heranças, títulos e fundos, mas também ativos financeiros, entre outros.
Desde 2017, o World Inequality Lab se debruça sobre os números disponíveis do Brasil e, de lá para cá, percebeu que, se ajustasse os relatórios do País pelas distribution national accounts — método que junta surveys de declaração de renda e informações sobre bens de capital —, seria possível ver como a desigualdade brasileira não tinha mudado tanto quanto se imaginava. No fim de 2024, alguns desses dados foram, enfim, publicados em um artigo. “E eu sei que investigadores brasileiros estão tentando, justamente, observar melhor essa distribuição do patrimônio. E já posso dizer que o resultado muda muito”, anuncia Flores nesta entrevista concedida à Revista Problemas Brasileiros (PB) na sua sala, no campus Jourdan da PSE, na capital francesa.
Pesquisadores colombianos dizem a mesma coisa da Colômbia, e eu sempre ouço isso dos chilenos sobre o Chile. Para saber melhor, só detalhando as estruturas das desigualdades, e isso depende da perspectiva. Se olharmos para elas a partir do Índice de Gini, veremos como se dá a distribuição da riqueza, mas se quisermos observar a dinâmica de concentração no topo da pirâmide social — o 0,1% mais rico, por exemplo —, então fará mais sentido usarmos dados fiscais.
O que salta aos olhos é como alguns países da América Latina tiveram capacidade de reduzir desigualdades em meados dos anos 2000. No entanto, no Brasil, esses mecanismos não foram suficientes para frear a expansão dos rendimentos mais altos localizados no extremo da pirâmide. A riqueza seguiu crescendo.
Juntamos dados administrativos com as pesquisas de survey [método que aplica questionários para uma investigação quantitativa] que já eram usadas. Queríamos encontrar coerência macroeconômica, ou seja, pegar os mesmos dados que os bancos centrais utilizam para estimar o Produto Interno Bruto (PIB) e procurar por consistências. Seria nessas informações que poderíamos ver os bens de capital. Quando aplicamos esse método para ajustar a série [de dados] do Brasil, percebemos que a história mudava: o resultado da desigualdade não era tão positivo quanto parecia, porque a linha era mais estável. Na verdade, permanecia um nível altíssimo de desigualdade, mesmo considerando uma queda tímida de 0,1 ou 0,2 ponto no Índice de Gini. Nada substancial. E a história muda ainda mais se forem agregados os dados sobre patrimônio.
Sei de investigadores brasileiros que estão, neste momento, tentando justamente observar a distribuição do patrimônio, e já posso afirmar que o resultado muda muito. A desigualdade patrimonial é sempre maior que a de renda. Não é possível ter renda negativa, mas dá para ter patrimônio negativo, ou seja, acumular dívidas. É uma outra dimensão da desigualdade.
Exato. Uma pessoa que era rica no Brasil dos anos 2000, mantendo o patrimônio a partir das taxas de juros altas existentes, enriqueceu bem mais que a média de crescimento do PIB. Na verdade, muitas pesquisas têm mostrado, agora, como os juros crescem segundo o nível das pessoas ricas — quanto maior a riqueza, mais os juros tendem a beneficiar essa riqueza. São esses mecanismos dinâmicos [de acumulação] que atravessam gerações no Brasil e na América Latina.
Primeiro, são as dinâmicas do patrimônio que geram fluxos [de renda]. Bens de capital são fluxos. Logo, o que acontece de um ano para o outro é sempre efeito do ponto de vista observado. Segundo, a renda do trabalho pode cair nesse intervalo, não só por ela própria, mas porque é medida por surveys. E aí vem o meu ponto. Ao pegar os dados das diferenças entre os grupos, é preciso inserir na conta todos os bens de capital. Ao fazer isso, fica claro, para mim, que o crescimento brasileiro é desigual, porque beneficia sempre os mais ricos. Basta observar o seguinte: o 1% mais rico do Brasil detém um terço dos rendimentos do País, em uma conjuntura que se mantém há, pelo menos, 20 anos. Isso significa, então, que para cada real que a economia brasileira cresce anualmente, 30% do resultado vai para os bolsos desse grupo. Mecanicamente. E não é só isso, porque o Brasil cresceu mais nos últimos anos. Trata-se de uma distinção brutal.
A herança colonial é uma parte da resposta. Os europeus repartiram a terra entre eles e, desde então, muitas reformas agrárias foram feitas e desfeitas — o que é importante para uma região que depende da terra para girar a economia.
Não sei se estou convencido, sabe?! Os artigos científicos são muito elegantes, sempre aceitos e publicados, mas eu gosto mais da hipótese do [historiador uruguaio Luis] Bértola sobre como o mundo era muito desigual até o fim do século 19. Ele mostra como os níveis de desigualdade na América Latina e na Europa não eram tão diferentes até aquele momento. Depois, [o economista francês Thomas] Piketty conseguiu mostrar como os níveis de desigualdade caíram na Europa a partir do século 20, com a industrialização, a globalização e as guerras. Foi por causa dessa conjuntura que as nações europeias adotaram o modelo de bem-estar social. Segundo Bértola, a América Latina perdeu esse episódio e, então, quando tentou recuperá-lo, na segunda metade do século 20, viu esses processos serem freados, ou por ditaduras ou por dinâmicas internas complexas, como no caso da Colômbia.
Os efeitos dinâmicos são impossíveis de antecipar. Empresas estrangeiras devem diminuir os fluxos de investimentos nos Estados Unidos, e muitos negócios de lá vão fechar as portas para estrangeiros — muitos que estão entre os profissionais mais produtivos do mundo. Isso é intrigante, pois, no modelo anterior, as empresas tinham acesso a esses trabalhadores porque ofereciam bons salários, e hoje eles nem sequer podem entrar no país.
Veio para ficar por algum tempo.
Porque há cópias baratas de Trump em muitos lugares diferentes. Há uma na Argentina agora, outra está crescendo no Chile. Teve no Brasil e em todos os países da Europa. Percebe?! Não é uma política isolada. Mais do que isso, está na sua curva de expansão. A menos que fracasse rotundamente e que isso seja reconhecido por essas lideranças, vai demorar muito para essa política passar.