O ‘S’ na corda bamba

13 de março de 2025

O

O conceito de ESG mal completou 20 anos e já está sob ameaça. A sigla para Environmental, Social and Governance — que em português significa Ambiental, Social e Governança — surgiu em 2004, no relatório Who Cares Wins, publicado pelo Pacto Global, da Organização das Nações Unidas (ONU), em parceria com o Banco Mundial. Ao longo dos anos, foi ganhando força no mundo empresarial como uma forma de as empresas assumirem responsabilidades para mudanças estruturais na sociedade. Contudo, nos últimos meses, várias companhias globais vieram a público anunciar o fim de programas de inclusão e diversidade, em um claro abandono da parte social do tripé ESG.

Os anúncios de descontinuidade de políticas de Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI) começaram a pipocar desde que Donald Trump foi eleito para a presidência dos Estados Unidos — e a lista ganha nomes a cada dia. São gigantes como Meta, Google, Amazon, Walmart, Ford, McDonald’s, Boeing, Disney, PepsiCo, Citigroup e Victoria’s Secret. O mandatário norte-americano, que tem reiterado ataques a políticas inclusivas, dedicou ao tema boa parte do seu primeiro discurso ao Congresso, no dia da posse, em 20 de janeiro. E em 4 de março, reforçou esse posicionamento: “Acabamos com a tirania das políticas da chamada diversidade, equidade e inclusão em todo o governo federal. E, de fato, no setor privado e em nossas Forças Armadas”.

Ainda não é certo o quanto a agenda antidiversidade defendida por Trump e abraçada por tantas empresas vai repercutir no Brasil. “Hoje, a influência é mais rápida, mas, de qualquer forma, ainda é um movimento muito recente para podermos tirar conclusões”, avalia Lina Nakata, professora na FIA Business School. No entanto, salienta que há quem siga a tendência atual, principalmente as empresas que criaram programas de DEI por modismo.

Na contramão

Enquanto gigantes dos negócios descontinuam ações de inclusão, há também um número relevante de empresas que reafirmaram o compromisso com os esforços pela diversidade, incluindo Apple, Costco, JPMorgan Chase e Goldman Sachs. “As empresas estão tomando várias decisões e nem todas cortaram. Isso vai deixar mais claro quais eram as companhias que adotaram políticas de DEI só para aparecer bem para o mercado e quais adotaram por princípios e crenças reais”, afirma a professora.

Lina pondera que adotar políticas de DEI pode ser caro e nem sempre o retorno é rápido — e líderes empresariais estão acostumados a atuar em ambientes altamente competitivos, com metas de curto prazo. “No Brasil, é um movimento de menos de dez anos e muitas empresas aderiram tardiamente. Mas o trabalho é de longo prazo. Tivemos quase quatro séculos de escravidão, portanto, a desigualdade não vai acabar tão cedo”, exemplifica.

Outro obstáculo são as políticas de DEI mal desenhadas, como quando são estabelecidas metas de contratação, mas sem esforços para além disso. “Até que ponto uma pessoa com deficiência, negra ou trans sente-se confortável na instituição? Poucas empresas calculam o turnover, mas se há muita rotatividade dessas pessoas, é mau sinal. Esse tipo de empresa também vai estar mais propensa a desistir da inclusão”, observa a professora.

Nesse sentido, o momento pode ser uma oportunidade para destacarem-se as empresas que se mantiverem firmes em valores de diversidade. “Se continuarem decididas e conseguirem mostrar esse compromisso, terão retorno, porque vão se destacar. Além de conquistar o consumidor, os talentos vão buscar essas empresas”, opina Lina. Pesquisas recentes mostram que a convivência com pares diversos pode influenciar os trabalhadores a atuarem com mais inovação e melhor desempenho em equipe — e até obter uma saúde melhor.

Mais que um fenômeno corporativo

Se são as Big Techs as responsáveis por grande parte da inovação que vemos no dia a dia, devem ser elas também as portadoras desse retrocesso no território nacional. “O modelo de negócios de Elon Musk e outras figuras do Vale do Silício pede uma internet desregulada, quase uma lei da selva”, aponta André Kaysel, professor no Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Na prática, significa que os mais fortes podem impor as próprias visões — e são justamente essas empresas que encabeçam o abandono das ações de inclusão.

Segundo o professor, a agenda anti-igualitária faz parte de um fenômeno maior, que ultrapassa os modelos de contratação adotados pelas empresas e tem relação com o fortalecimento da extrema direita ao redor do mundo. Kaysel explica que alguns autores chamam o fenômeno de guerras culturais, pois estas têm o objetivo de, inclusive, redefinir os valores da sociedade. “O ataque a minorias é estratégico, seja na visão do nacionalismo, com o discurso anti-imigração e do fundamentalismo religioso, seja pela perspectiva de um liberalismo extremo que defende o direito à liberdade até de agredir os outros”, destaca. 

Dois bodes expiatórios comuns dos representantes da extrema direita global são os movimentos femininista e LGBTQIA+ — mas nem tudo o que acontece nos Estados Unidos repete-se abaixo da linha do Equador. “No Brasil, em termos gerais, os imigrantes não são um tipo de inimigo importante. Quanto ao racismo, aqui este se revela pela sua negação e é raro ver expressões do supremacismo branco explícitas como entre os norte-americanos”, compara Kaysel.

Ana Lucia Melo, diretora-adjunta do Instituto Ethos, acredita que o Brasil está, até certo ponto, protegido dos retrocessos em suas políticas de DEI, por causa das diferenças legais e do engajamento social com os temas. Em 2023, a Suprema Corte estadunidense decidiu pela inconstitucionalidade de se usarem critérios raciais na admissão em faculdades. “Isso causa uma insegurança jurídica, porque as empresas correm o risco de serem questionadas por políticas de diversidade”, pontua Ana Lucia. O contexto brasileiro, porém, é bem diferente. “Aqui, o entendimento jurídico é favorável a ações afirmativas. Há uma série de dispositivos legais que apontam para as promoções da equidade e da diversidade”, ressalta.

Essa diferença significa que, mesmo as multinacionais que abandonaram medidas de DEI nos Estados Unidos, devem mantê-las aqui. “Nem todas vêm a público, mas o McDonald’s do Brasil, por exemplo, uma empresa que vem avançando na agenda racial, anunciou publicamente que vai dar continuidade aos esforços para promover equipes de trabalho diversas”, acrescenta Ana Lucia.

Resultado prático

O empresariado brasileiro reconhece a importância de ações inclusivas para impulsionar os negócios. Uma pesquisa realizada pelo Ethos, com apoio da revista Época Negócios, divulgada em 2024, mostrou que, das empresas que promovem DEI, 91,7% tiveram melhoria do clima organizacional, ao passo que 91% registraram aumento da produtividade e 80% alcançaram mais inovação no desenvolvimento de produtos ou serviços.

O momento no Brasil é de expansão de direitos. Em 2023, a prevenção ao assédio entrou para a lista de atribuição das Cipas, que agora é a sigla para Comissão Interna de Prevenção de Acidentes e de Assédio. Em 2024, mais de 49 mil empresas com mais de cem funcionários apresentaram, voluntariamente, relatórios sobre igualdade salarial entre homens e mulheres. 

O apoio à causa também pode ser vista em casos isolados. “Recentemente, um vice-presidente de Recursos Humanos fez um discurso contrário à diversidade, mas logo houve grande mobilização e ele precisou se desculpar e ajustar as falas”, cita Ana Lucia. Nada disso, é claro, faz do Brasil um exemplo de inclusão. Temos desafios próprios de um país desigual. “As pessoas conseguem olhar para a questão não como uma pauta de costumes, mas de direito de acesso e desenvolvimento para a sociedade brasileira”, sustenta a diretora do Ethos.

O Brasil tem, de fato, um longo caminho a ser percorrido, mas trata-se de uma estrada sem retorno, analisa Cristiane Cortez, assessora do Conselho de Sustentabilidade da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP). Sobretudo nas empresas menores, não há sequer espaço para retrocessos. “Há muita diversidade, muitos casos em que a empreendedora é mulher. O Comércio costuma refletir mais a diversidade da nossa sociedade, até por ser uma porta de entrada para o mercado de trabalho. E, por serem menores, a hierarquia é mais curta”, detalha.

Mesmo quando se trata da agenda ambiental, outra perna do ESG que costuma ser atacada por Trump, Cristiane espera um efeito limitado, nacional ou internacionalmente. “No caso das grandes empresas, com capital aberto, esses negócios já têm metas e políticas de longo prazo. Não devem mexer nisso”, argumenta. 

A especialista em sustentabilidade afirma ter ficado preocupada quando Trump assumiu o primeiro mandato, em 2017, mas a catástrofe prevista inicialmente não se concretizou. “Desta vez, oito anos mais tarde, o empresário já percebeu as consequências do não cuidado com o ambiente, pois já estamos sentindo os efeitos. Podemos até ver uma pequena oscilação na trajetória das metas ambientais, mas muitas empresas nem vão se abalar”, conclui Cristiane.

Luciana Alvarez Débora Faria
Luciana Alvarez Débora Faria