Verão extremo

15 de dezembro de 2025

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O problema é real, embora silencioso e invisível. Não rende imagens impressionantes, como as das enxurradas arrastando construções, dos blocos de gelo se desprendendo de icebergs, ou das queimadas destruindo áreas imensas de vegetação. Mas, além de tudo isso, as alterações climáticas têm provocado o aumento de dias de calor extremo, um incômodo que é sentido na pele das pessoas que vivem nas grandes cidades.

A questão, porém, vai muito além do desconforto — o calor representa um perigo real de saúde pública, para a economia e para a educação. Dias de calor intenso prejudicam atividades econômicas realizadas ao ar livre, dificultam a concentração necessária para o aprendizado e causam problemas de saúde que lotam os hospitais e matam. É, portanto, uma situação ambiental que entrelaça urbanismo e saúde pública.

“O calor extremo é o perigo climático mais letal. As áreas urbanas enfrentam os efeitos mais severos da crise em decorrência do fenômeno das ilhas de calor, que podem elevar as temperaturas em 5ºC a 10°C”, afirma Lily Riahi, chefe de secretariado da Cool Coalition, liderada pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) da Organização das Nações Unidas (ONU). “O resfriamento deve ser tratado como uma infraestrutura essencial, crítica como os fornecimentos de água, de energia e de saneamento básico. Também é fundamental para o funcionamento de hospitais, escolas, transportes e redes de suprimento alimentar”, ressalta.

Na Europa, que se despediu recentemente de mais um verão com temperaturas recordes, as ondas de calor são cada vez mais frequentes, longas e intensas, com termômetros ultrapassando rotineiramente os 45ºC em países como Itália, Grécia, Espanha, Portugal e França. Diante dessa nova realidade climática, as cidades tentam se adaptar.

Soluções urbanas

Algumas iniciativas têm o objetivo primário de hidratar a população. Faz 11 anos que a Prefeitura de Paris, capital da França, começou a espalhar bebedouros pela cidade, permitindo que as pessoas bebam água gratuitamente, ao mesmo tempo em que desincentiva o uso de garrafas plásticas descartáveis, reduzindo o lixo produzido. Atualmente, são mais de 1,2 mil bebedouros. Roma, capital da Itália, tem fontes de água potável nas ruas há mais tempo.

Outro caminho é oferecer pontos de refresco e descanso nas horas mais quentes do dia. Em Valência, na Espanha, os “abrigos climáticos” começaram a ser instalados em 2024 — são locais públicos com ar-condicionado, em geral em bibliotecas e centros sociais, onde também há sofás confortáveis, banheiros e oferta de água. Em Antuérpia, na Bélgica, os chamados cool spots (“lugares legais”) estão se espalhando em áreas abertas, mas sombreadas com árvores, onde há bancos e acesso à água.

Algumas estratégias tentam ir além, fazendo com que a água fresca seja não apenas para beber, mas também para se banhar. O projeto Swimmable Cities Alliance reúne 100 organizações em 59 cidades e defende que nadar é igualmente um direito. Para garantir esse benefício, é preciso tornar os rios urbanos seguros para o lazer — e o resfriamento. Copenhague, capital da Dinamarca, foi uma das primeiras cidades a despoluir seus canais e, há dez verões, os moradores podem dar um mergulho no meio da cidade. Em Roterdã, na Holanda, o porto industrial Rijnhaven vem se transformando em uma área de esporte, lazer e alívio do calor.

Não só o calor, mas também o excesso de água das chuvas pode ser driblado com mudanças nas cidades. “Espaços urbanos verdes, como parques e telhados, e azuis, como lagos, rios e superfícies permeáveis, reduzem os picos de temperatura ao mesmo tempo que gerenciam a água da chuva e reduzem os riscos de inundação”, observa Lily.

Por outro lado, o ar-condicionado converteu-se numa espécie de paradoxo do mundo atual. Parece cada vez mais necessário, porque o planeta está aquecendo, mas seu uso acaba por contribuir para esquentá-lo ainda mais. Portanto, as primeiras opções devem ser as chamadas de “resfriamento passivo”, como o isolamento de telhados, a ventilação natural, espaços verdes urbanos e materiais de construção refletivos, opina a secretária da Cool Coalition.

Apesar de múltiplas e planejadas sob medida para cada realidade, Luís Miguel Correia, professor no Departamento de Arquitetura da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra (FCTUC), resume os esforços ambientais das cidades europeias em duas frentes — criar zonas verdes e azuis e instalar painéis solares para obter energia renovável. “Assistimos, basicamente, a esforços de arborização e de instalação de fontes e lagos dentro das cidades. Há uma conscientização pública sobre a importância desses espaços, que resiste mesmo com os problemas de habitação que vivemos, com a necessidade de construção de mais edifícios”, afirma.

Contudo, Correia considera que o que se tem feito é como “colocar um pequeno curativo para estancar um sangramento profundo”, pois não são ações capazes de deter o aumento das temperaturas. “O calor faz parte de um problema maior. Não adianta plantar na cidade, se cortamos árvores nas florestas. Dentro das cidades, ainda é preciso fazer mais, com medidas que levem as pessoas a andar a pé ou de transporte público”, pontua.

Do Norte aos trópicos

No Brasil, o verão costuma ser, além de quente, chuvoso. Por isso, é importante que as adaptações considerem também os sistemas de drenagem. “Na Cidade de São Paulo, a quantidade de dias com chuva severa, mais de 100 milímetros, aumentou quatro vezes em comparação com a década de 1990”, informa o físico Paulo Artaxo, professor titular no Departamento de Física Aplicada do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IFUSP). Depois da chuva, muitas vezes o município sofre com a falta de energia elétrica, o que deixa as pessoas ainda mais vulneráveis ao calor intenso.

“Cada cidade vai ter de se adaptar à própria maneira, não existe uma regra”, avalia Artaxo. No entanto, o físico especialista em clima enfatiza que já existem instrumentos e conhecimento para saber o que fazer — citando a ferramenta Adapta Brasil, que ajuda a organizar as ações — e o que falta é vontade e sentido de urgência. “É uma questão de estratégia política e econômica. A rua da minha casa nunca fica inundada, mas a rua onde mora a empregada doméstica alaga todos os anos”, compara.

Sem solução definitiva no horizonte, a área da Saúde precisa de reforço para lidar com as consequências. No Brasil, fala-se em 48 mil mortes por ondas de calor entre 2000 e 2018, mas esse número deve estar subestimado. “Elas não morrem propriamente de calor. Morrem porque a dificuldade de fazer a regulação térmica do corpo sobrecarrega o coração e os pulmões”, explica Artaxo. Acrescenta-se, ainda, que o verão é a época em que os casos de arboviroses, como a dengue, atingem o auge.

Sem registro oficial, a melhor forma de entender os efeitos do calor é o acompanhamento do que se chama de “mortalidade excessiva” e comparar com os registros dos termômetros. “Em Portugal, em 2022, tivemos quatro picos de mortalidade excessiva, quando se ultrapassou em 20% o número de mortes esperadas para o período. Três foram por causa da covid-19. O quarto, em julho, aconteceu depois de uma semana inteira de altíssimas temperaturas”, relata Carlos Robalo Cordeiro, diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC).

Fazendo essa análise epidemiológica, na Europa, no verão de 2024, quase 63 mil pessoas morreram por causa das altas temperaturas — ainda não há números consolidados do verão deste ano. Em termos de comparação, em 2024, inundações mataram 400 pessoas no continente europeu. 

Segundo Cordeiro, o risco climático deveria ser integrado aos planos de emergência hospitalares e de saúde pública. “O ideal é enviar alertas, sobretudo para quem tem doenças crônicas e para as populações mais vulneráveis, com o objetivo de se protegerem e evitarem atividades físicas ao ar livre. Pode ser por SMS, divulgação nos órgãos de imprensa, redes sociais”, sugere o médico, que estuda o tema e esteve na 30ª Conferência sobre Mudanças Climáticas (COP30) da Organização das Nações Unidas (ONU), em Belém, no Pará, para discutir o assunto. Outro ponto essencial, acrescenta, é capacitar as equipes e deixá-las de prontidão para os momentos de crise.

Sem cuidar do que causa a febre do planeta, os médicos continuarão a tratar apenas as consequências, cada vez maiores. “Vamos ser chamados a intervir com mais frequência”, prevê Cordeiro.

Luciana Alvarez
Annima de Mattos
Luciana Alvarez
Annima de Mattos