Alicerce do moderno nacional

31 de janeiro de 2025

Indagado sobre o impacto da ausência do criador de Macunaíma, o crítico Antonio Candido resume: “Para encontrar na literatura brasileira uma morte dessa importância, seria preciso recuar até Machado de Assis”.

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Um acontecimento de profundo significado simbólico acontece no dia 25 de fevereiro de 1945, na cidade de São Paulo — a morte do escritor e poeta modernista Mário de Andrade. Vítima de infarto fulminante, aos 51 anos e 4 meses, desaparecia o principal responsável por colocar o Brasil na trilha de suas independências artística e cultural e pela permanente busca de uma identidade nacional própria e autônoma em meio a estrangeirismos e modismos importados

Um mês antes, entre os dias 22 e 27 de janeiro, Mário dera sua derradeira contribuição à intelectualidade brasileira ao ajudar a organizar, na capital paulista, o I Congresso Brasileiro de Escritores. Raro momento de coesão entre intelectuais de diferentes tendências políticas e literárias — como liberais, católicos, socialistas e comunistas —, o encontro reuniu mais de 200 participantes de todos os Estados brasileiros, além de representantes de 16 países.

Independência artística

Apoiado por personalidades internacionais do gabarito do físico Albert Einstein, o Congresso não teve qualquer patrocínio, público ou privado, com as despesas custeadas pelos próprios participantes. “Não houve mecenas e nos regozijamos com a liberdade de não precisar agradecer-lhes”, disse o escritor, pintor e crítico de arte Sérgio Milliet em seu discurso de boas-vindas aos participantes. Dessa forma, em claro desafio à censura do governo ditatorial da época, os temas centrais debatidos, ainda hoje atuais, foram o papel do escritor na luta contra o fascismo, a democratização da cultura e a liberdade de criação literária.

Paralelamente ao evento, uma programação cultural ocupava a cidade, com ações voltadas aos congressistas visitantes e ao público em geral: a apresentação do Grupo de Teatro Experimental, exposição de artes, visitas e festejos. Nas horas de folga entre os debates, Mário prefere, porém, tomar chopes em companhia do jovem poeta carioca Vinicius de Moraes.

A Declaração de Princípios, aprovada ao fim do congresso por uma rara unanimidade política nunca vista — nem antes, nem depois —, contém três pontos que buscavam blindar a civilização contra o totalitarismo, ainda hoje plenamente válidos:

  1.  legalidade democrática como garantia da completa liberdade;
  2.  sistema de governo eleito pelo povo mediante sufrágio universal, direto e secreto;
  3.  pleno exercício da soberania popular em todas as nações.

Dentre as teses apresentadas e aprovadas nas sessões plenárias, destacam-se o fim da censura, então exercida pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), e a regulamentação dos direitos autorais, com o objetivo de permitir a profissionalização do ofício de escrever.

Diante do mercado editorial em plena expansão, algumas editoras passam a praticar o pagamento antecipado dos direitos dos autores, permitindo a um grupo de escritores dedicarem-se à literatura como atividade principal, casos de Jorge Amado, José Lins do Rego e Érico Veríssimo.

Novo modernismo

Nos planos estético e literário, surge uma nova plêiade de escritores modernistas, que se tornou conhecida como a “Geração de 45”, preocupada em buscar inovações temáticas e linguísticas, como as que marcam as obras de Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Experimentações que contrastam com a fase heroica anterior do movimento, marcada pelo radicalismo e inspirada em vanguardas europeias.

“Nós éramos os filhos finais de uma geração que se acabou”, resumiu Mário de Andrade sobre o cenário de fórmulas importadas que precede a Semana de Arte Moderna de 1922. E completa, elencando os avanços obtidos pelo movimento que ele próprio formulou e liderou: “A conquista do direito permanente à pesquisa estética, a atualização da inteligência artística brasileira e a estabilização de uma consciência criadora nacional”.

A partir daí, os temas nacionalistas ocupam espaço na literatura e procuram recuperar nossas raízes históricas, até então apagadas ou invisibilizadas — o negro, o indígena, o caipira. Para desvendar o Brasil, os artistas voltam-se para o regionalismo e a crítica social. A massa anônima de raças formadoras da nacionalidade e de trabalhadores do campo e da cidade passa a ocupar o primeiro plano. É o caminho aberto pelas novas obras de sociologia e história: Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre; Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda; e Evolução política do Brasil, de Caio Prado Júnior.

Tudo isso desagua, porém, na síntese autoritária do Estado Novo. Elaborado sob a batuta do então ministro da Educação, Cultura e Saúde, Gustavo Capanema, e de seu chefe de gabinete, o poeta Carlos Drummond de Andrade, o “projeto nacional moderno” articula uma constelação de produtores culturais cooptados como funcionários públicos, como o compositor Villa-Lobos, o pintor Portinari e os arquitetos Lucio Costa e Oscar Niemeyer, além do próprio Mário de Andrade. Em texto de 1941, ele ironiza: “Tempo houve em que o Estado exigiu do intelectual a sua integração no corpo do regime. Ao lado de movimentos mais sérios e honestos, o intelectual viveu de namorar com as novas ideologias do telégrafo”.

Em 1945, porém, Mário de Andrade está morto e o Estado Novo sucumbe sob os escombros dos regimes congêneres derrotados nos campos de batalha. Na transição para um mundo impactado pelos horrores do Holocausto e da hecatombe nuclear, o nacionalismo teria de encontrar novas formas de expressão, que logo surgiriam no teatro, no cinema e na música popular.

No rádio, a canção de Dorival Caymmi retrata o fluxo de migrantes atraídos ao Sudeste pelo surgimento das metrópoles. “Peguei um Ita no Norte e vim pro Rio morar”, diz o verso inicial, referindo-se aos navios da Cia. Nacional de Navegação Costeira (Itapajé, Itaquicé, Itajiba etc.), em breve substituídos pelo transporte rodoviário.

Enquanto o Brasil deixa de ser rural para se industrializar e urbanizar, o sonho de uma alma nacional ecoa nas páginas do poema Mafuá do malungo, de Manoel Bandeira, mesclando letras minúsculas e maiúsculas: “Brasil/Como será o Brasil?/MÁRIO DE ANDRADE”.

Herbert Carvalho Annima de Mattos
Herbert Carvalho Annima de Mattos