Indagado sobre o impacto da ausência do criador de Macunaíma, o crítico Antonio Candido resume: “Para encontrar na literatura brasileira uma morte dessa importância, seria preciso recuar até Machado de Assis”.
Um acontecimento de profundo significado simbólico acontece no dia 25 de fevereiro de 1945, na cidade de São Paulo — a morte do escritor e poeta modernista Mário de Andrade. Vítima de infarto fulminante, aos 51 anos e 4 meses, desaparecia o principal responsável por colocar o Brasil na trilha de suas independências artística e cultural e pela permanente busca de uma identidade nacional própria e autônoma em meio a estrangeirismos e modismos importados.
Um mês antes, entre os dias 22 e 27 de janeiro, Mário dera sua derradeira contribuição à intelectualidade brasileira ao ajudar a organizar, na capital paulista, o I Congresso Brasileiro de Escritores. Raro momento de coesão entre intelectuais de diferentes tendências políticas e literárias — como liberais, católicos, socialistas e comunistas —, o encontro reuniu mais de 200 participantes de todos os Estados brasileiros, além de representantes de 16 países.
Apoiado por personalidades internacionais do gabarito do físico Albert Einstein, o Congresso não teve qualquer patrocínio, público ou privado, com as despesas custeadas pelos próprios participantes. “Não houve mecenas e nos regozijamos com a liberdade de não precisar agradecer-lhes”, disse o escritor, pintor e crítico de arte Sérgio Milliet em seu discurso de boas-vindas aos participantes. Dessa forma, em claro desafio à censura do governo ditatorial da época, os temas centrais debatidos, ainda hoje atuais, foram o papel do escritor na luta contra o fascismo, a democratização da cultura e a liberdade de criação literária.
Paralelamente ao evento, uma programação cultural ocupava a cidade, com ações voltadas aos congressistas visitantes e ao público em geral: a apresentação do Grupo de Teatro Experimental, exposição de artes, visitas e festejos. Nas horas de folga entre os debates, Mário prefere, porém, tomar chopes em companhia do jovem poeta carioca Vinicius de Moraes.
A Declaração de Princípios, aprovada ao fim do congresso por uma rara unanimidade política nunca vista — nem antes, nem depois —, contém três pontos que buscavam blindar a civilização contra o totalitarismo, ainda hoje plenamente válidos:
Dentre as teses apresentadas e aprovadas nas sessões plenárias, destacam-se o fim da censura, então exercida pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), e a regulamentação dos direitos autorais, com o objetivo de permitir a profissionalização do ofício de escrever.
Diante do mercado editorial em plena expansão, algumas editoras passam a praticar o pagamento antecipado dos direitos dos autores, permitindo a um grupo de escritores dedicarem-se à literatura como atividade principal, casos de Jorge Amado, José Lins do Rego e Érico Veríssimo.
Nos planos estético e literário, surge uma nova plêiade de escritores modernistas, que se tornou conhecida como a “Geração de 45”, preocupada em buscar inovações temáticas e linguísticas, como as que marcam as obras de Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Experimentações que contrastam com a fase heroica anterior do movimento, marcada pelo radicalismo e inspirada em vanguardas europeias.
“Nós éramos os filhos finais de uma geração que se acabou”, resumiu Mário de Andrade sobre o cenário de fórmulas importadas que precede a Semana de Arte Moderna de 1922. E completa, elencando os avanços obtidos pelo movimento que ele próprio formulou e liderou: “A conquista do direito permanente à pesquisa estética, a atualização da inteligência artística brasileira e a estabilização de uma consciência criadora nacional”.
A partir daí, os temas nacionalistas ocupam espaço na literatura e procuram recuperar nossas raízes históricas, até então apagadas ou invisibilizadas — o negro, o indígena, o caipira. Para desvendar o Brasil, os artistas voltam-se para o regionalismo e a crítica social. A massa anônima de raças formadoras da nacionalidade e de trabalhadores do campo e da cidade passa a ocupar o primeiro plano. É o caminho aberto pelas novas obras de sociologia e história: Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre; Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda; e Evolução política do Brasil, de Caio Prado Júnior.
Tudo isso desagua, porém, na síntese autoritária do Estado Novo. Elaborado sob a batuta do então ministro da Educação, Cultura e Saúde, Gustavo Capanema, e de seu chefe de gabinete, o poeta Carlos Drummond de Andrade, o “projeto nacional moderno” articula uma constelação de produtores culturais cooptados como funcionários públicos, como o compositor Villa-Lobos, o pintor Portinari e os arquitetos Lucio Costa e Oscar Niemeyer, além do próprio Mário de Andrade. Em texto de 1941, ele ironiza: “Tempo houve em que o Estado exigiu do intelectual a sua integração no corpo do regime. Ao lado de movimentos mais sérios e honestos, o intelectual viveu de namorar com as novas ideologias do telégrafo”.
Em 1945, porém, Mário de Andrade está morto e o Estado Novo sucumbe sob os escombros dos regimes congêneres derrotados nos campos de batalha. Na transição para um mundo impactado pelos horrores do Holocausto e da hecatombe nuclear, o nacionalismo teria de encontrar novas formas de expressão, que logo surgiriam no teatro, no cinema e na música popular.
No rádio, a canção de Dorival Caymmi retrata o fluxo de migrantes atraídos ao Sudeste pelo surgimento das metrópoles. “Peguei um Ita no Norte e vim pro Rio morar”, diz o verso inicial, referindo-se aos navios da Cia. Nacional de Navegação Costeira (Itapajé, Itaquicé, Itajiba etc.), em breve substituídos pelo transporte rodoviário.
Enquanto o Brasil deixa de ser rural para se industrializar e urbanizar, o sonho de uma alma nacional ecoa nas páginas do poema Mafuá do malungo, de Manoel Bandeira, mesclando letras minúsculas e maiúsculas: “Brasil/Como será o Brasil?/MÁRIO DE ANDRADE”.