“A Terra está doente, precisa de cuidado intenso. E esse cuidado é coletivo.” A afirmação de Maria Guevara, secretária médica internacional da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF), soa como um alerta: as frequentes catástrofes causadas pelas mudanças climáticas, ocorridas em todo o planeta, expõem milhares de pessoas a condições de saúde precárias. E as populações mais vulneráveis são as que mais sofrem.
Maria participou, na Casa Balaio, em Belém, capital do Pará, de um encontro aberto com a comunidade para discutir a relação entre emergência climática e saúde. A reunião, promovida pela organização médica internacional, antecipou debates sobre temas importantes da 30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP30), que será realizada na capital paraense, em novembro.
Norte-americana de origem filipina, Maria reforça que a emergência climática afeta de maneira desigual as populações do planeta, com impacto maior sobre aquelas que já são mais vulneráveis. “A mudança de regimes de chuva modifica o ciclo de vida de vetores de doenças, como mosquitos, que se instalam em regiões onde antes não estavam presentes”, destacou, citando o avanço da dengue e da malária nas Américas.
A dirigente da MSF entende que a atenção à saúde deve ser tratada como um tópico importante nos debates da COP30. Segundo Maria, além de cuidar de emergências, a MSF dedica-se a construir pontes para o reconhecimento de diferentes realidades, que permitam a busca de soluções para os graves problemas que põem em risco a saúde humana e a vida no planeta. “Desde 2018, a MSF envolve-se com a COP. Esperamos que a Conferência possa dar voz às comunidades. Que traga à tona a voz dos indígenas, que seja a COP das pessoas”, afirmou.
Os fluxos migratórios, que podem ser o resultado da combinação de conflitos com mudanças climáticas extremas, também preocupam a MSF. “Secas e inundações afetam a produção de alimentos, o que pode gerar uma crise nutricional e impulsionar movimentos migratórios”, explicou a médica. Quando a vida já não é mais sustentável no território onde se encontram, adverte, as populações tendem à migração. “Esses eventos também contribuem para o aumento de surtos de doenças evitáveis, como sarampo e cólera, bem como para a desnutrição”, observou.
Segundo a pesquisa O Estado da Segurança Alimentar e da Nutrição no Mundo, publicada em 2023 por cinco agências especializadas da Organização das Nações Unidas (ONU), cerca de 733 milhões de pessoas sofreram com a fome naquele ano, o que equivale a 1 em cada 11 pessoas em todo o mundo, e a 1 em cada 5 na África.
Para a médica, as organizações internacionais dedicadas ao controle dos eventos climáticos extremos, e suas consequências, também devem ampliar as próprias ações, com foco em médio e longo prazos. “É difícil saber o que vai sair da COP30. Mas é importante tomar decisões. Precisamos nos afastar dos combustíveis fósseis, mudar as políticas e informar”, ressaltou.
Também presente no evento da Casa Balaio, a psicóloga alagoana Renata Santos, presidente do Conselho Administrativo da MSF-Brasil, pontuou que as populações mais vulneráveis são as que mais sofrem as consequências dos desastres ambientais causados pelas mudanças climáticas. “Isso nós temos percebido na prática do nosso trabalho, nos mais de 70 países em que atuamos”, assinalou.
Renata chamou a atenção para o aumento dos casos relacionados à saúde mental, em decorrência da crise climática. No caso do Brasil, alguns dos exemplos mais recentes desses eventos extremos foram as enchentes no Rio Grande do Sul, onde a MSF atuou, e as secas que atingiram a região amazônica. “As pessoas em situação de emergência têm necessidades mais evidentes, visíveis. As questões de saúde mental, como os casos de ansiedade e depressão, nem sempre são visíveis”, apontou Renata, destacando que o estado de bem-estar emocional, psicológico e social não está dissociado do contexto socioambiental.
Por atuar em contato direto com as pessoas atingidas, a MSF testemunha, em primeira mão, o impacto dos eventos climáticos sobre as populações de todo o planeta. “A gente vê, no nosso dia a dia, como as crises ambientais, os conflitos e as epidemias afetam as populações. As informações coletadas não nos dão sinais de que essa situação será resolvida em curto prazo. Ao contrário”, advertiu a psicóloga.
O médico indígena Idjarrury Sompré, que também participou do evento em Belém, foi taxativo — os efeitos da crise climática são mais evidentes e intensos nas comunidades indígenas. Sompré atua na Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), na região de Santarém, oeste do Estado do Pará, e relatou a sua experiência. “Nas cheias e nas secas, a questão mais relatada é a insegurança alimentar. A alteração climática muda o ciclo da chuva, alterando a produção de alimentos”, enfatizou ele, que é da etnia Kaingang, originária de Santa Catarina.
Segundo Sompré, as interferências externas no equilíbrio das comunidades, no chamado “bem viver indígena”, desarranjam a organização social e comprometem a vida em harmonia com o meio ambiente. O médico indígena citou o princípio da reciprocidade para explicar a dinâmica que move os povos originários na sua relação com o planeta. “As comunidades dependem de um ambiente saudável. Nessa relação de mão dupla, sem priorizar o capital, a gente cuida do meio ambiente para ser cuidado por ele”, salientou.
A saúde mental dos indígenas também está em pauta, de acordo com Sompré. “Os abusos de substâncias, como o álcool, são decorrentes do estado mental afetado pela quebra da reciprocidade”, afirmou, defendendo que os povos originários sejam cada vez mais protagonistas do trabalho de cuidado da própria saúde. “A base de uma intervenção em saúde é promover autonomia das comunidades e enfrentar o isolamento”, argumentou.
Na avaliação da MSF, a COP na Amazônia ganha dimensão especial ao criar condições, pela primeira vez, para que as vozes das comunidades sejam ouvidas e respeitadas pelo conhecimento que podem oferecer, especialmente no aprimoramento das políticas de saúde. A organização médica espera que os debates da reunião, que ocorre em novembro, possam ser enriquecidos pelas experiências daqueles que mais enfrentam os efeitos da emergência climática, tanto no Brasil quanto no resto do mundo.
Nas últimas edições da COP, segundo Renata, houve pouco espaço para a participação das comunidades, e o desejo é que essa realidade mude em Belém. “No Brasil, a gente tem a oportunidade de incluir nas discussões as vozes das comunidades, principalmente das indígenas, as guardiãs da floresta”, destacou.
Segundo a presidente do Conselho da MSF-Brasil, o fortalecimento dos espaços de convivência, com equipes preparadas para agir nas emergências, é determinante para romper, no caso brasileiro, um histórico ciclo de abandono. “Muitas vezes, a terra não é mais produtiva. Há uma dependência muito grande das políticas públicas, que às vezes não chegam. E é dever do Estado de prover”, assinalou.