“As pessoas não moram na União nem nos Estados. Elas vivem nos municípios.” A frase de André Franco Montoro, ex-governador de São Paulo (1916–1999), é citada por Renato Janine Ribeiro, filósofo e ex-ministro da Educação, como antídoto à polarização política que ganha nova musculatura com a proximidade das eleições municipais. Focar em temas de interesse do cidadão — como saúde, educação, transporte e segurança — é a melhor forma de impedir que a radicalização prejudique novamente o debate político na disputa eleitoral deste ano, em que serão escolhidos novos prefeitos e vereadores nos mais de 5,6 mil municípios brasileiros.
“O eleitor deve desconfiar do candidato que fala muito sobre sexo, drogas, religião e outras questões que não estão na alçada municipal. É preciso perguntar o que ele pretende fazer em relação à escola municipal, aos cuidados com a saúde da população, ao transporte público e ao trânsito”, explica Janine Ribeiro, em entrevista à Problemas Brasileiros. “É necessário saber como o político que busca o voto pretende lidar, por exemplo, com questões como os desastres climáticos, como esse que assolou o Rio Grande do Sul”, completa Ribeiro, também professor de filosofia política na Universidade de São Paulo (USP).
Manter o foco em questões pragmáticas e programáticas inerentes à disputa municipal também é a opinião do cientista político Alberto Carlos Almeida, com quem Janine acaba de lançar o livro A política como ela é (Editora Difel, 252 páginas, R$ 59,90). “É necessário trazer o debate para os problemas e as questões de cada município, em vez de ficar discutindo sobre decisões do Supremo Tribunal Federal ou outros temas de Brasília. Essa é a maneira mais direta e eficaz de lidar e reduzir os efeitos da polarização”, destaca Almeida.
Em formato de diálogo e linguagem bastante acessível, os dois autores tornaram o livro uma verdadeira aula sobre os mais diversos assuntos relacionados à política, como democracia; diferenças entre parlamentarismo e presidencialismo; embates entre direita e esquerda; conceitos relacionados à social-democracia; comunismo e fascismo; voto obrigatório e facultativo; e a recente polarização política no Brasil, que, muitas vezes, impede qualquer forma de diálogo entre pessoas que pensam de maneiras diferentes, mesmo com o objetivo comum de melhorar a comunidade ou país.
A ideia do livro nasceu na pandemia, período em que os autores ofereceram um curso de política online. Em um período desafiador a todos em razão das restrições sanitárias e disseminação de fake news nas mais diversas áreas, a proposta era democratizar e levar o conhecimento sobre política a um público o mais amplo possível. “Muitas pessoas começaram a se interessar por política naquela época [da pandemia], e achamos que elas poderiam ter um acesso mais especializado sobre o tema”, explica Almeida. Daí o formato de diálogo entre os dois autores adotado na obra, de tal forma que o leitor tem a impressão de estar participando de uma aula ou mesmo um grupo de discussão, com os temas postos de uma maneira simples e didática, mas sem perder a densidade teórica.
Os autores lembram que a polarização não tem lado preferencial e conquista adeptos tanto à direita como à esquerda. A radicalização adotada na discussão de temas é semelhante, mas com os sinais trocados. “Ambos os lados praticam o negacionismo. Enquanto a esquerda tende a ser mais negacionista em temas relacionados à economia, a direita, por sua vez, é negacionista em assuntos climáticos e pautas de costumes”, explica Almeida. Ao abordar temas como sistemas de governo (parlamentarismo ou presidencialismo), a obra apresenta as vantagens e desvantagens de cada um deles, evitando julgamentos sobre o que é melhor ou pior para a sociedade. As exceções, claro, são as ditaduras, que não se justificam em qualquer lugar, tipo ou circunstância. O Brasil, como a maior parte dos países americanos, conta com forte tradição presidencialista, em que o poder está centralizado em torno da figura do presidente da República. As pessoas, explicam os autores, tendem a se sentirem mais representadas nesse sistema, pois o chefe do poder é eleito diretamente pelo voto popular.
O parlamentarismo, por sua vez, costuma provocar menos conflitos políticos e trocas de governo menos traumáticas em casos de afastamento do presidente, por exemplo. Ribeiro lembra que, desde a redemocratização do Brasil, em 1985, dos cinco presidentes eleitos pelo povo, dois sofreram impeachment (Fernando Collor de Melo e Dilma Rousseff). Isso leva a crer que o parlamentarismo — em que o poder, de fato, é exercido pelo parlamento, na figura do primeiro-ministro — teria permitido a substituição dos presidentes com menos traumas ao País. “Todavia, numa cultura personalista como a nossa, em que se dá mais peso ao voto no Executivo do que no Legislativo, uma reforma dessas [adoção do parlamentarismo] teria apoio popular?”, indaga Ribeiro, lembrando que dois plebiscitos foram realizados no Brasil para escolha do sistema de governo, em 1963 e 1993. Nos dois casos, venceu o presidencialismo.
Outra discussão se refere ao voto obrigatório. O argumento de que a liberdade democrática não é compatível com a imposição do voto obrigatório merece uma reflexão maior a respeito do próprio conceito de liberdade, segundo os pensadores. “Não existe liberdade sem responsabilidade. Gozar de liberdade, necessariamente, implica deveres. Se posso desfrutar do direito à cidadania, tenho também que cumprir obrigações”, explica Ribeiro. Segundo ele, muitas vezes são as obrigações cidadãs que fazem os direitos funcionarem. No começo da Nova República, que substituiu a ditadura militar, era prática comum as prefeituras reduzirem o transporte público em dias de eleições para impedir as pessoas de votar. Em 2022, a cúpula da Polícia Rodoviária Federal (PRF) foi acusada de montar operações de fiscalização de ônibus em estradas do Nordeste para dificultar o acesso de eleitores da região — majoritariamente a favor do então candidato Lula — às urnas. “Com a obrigatoriedade do voto, ações deliberadamente fraudulentas não podem ocorrer. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) fica a postos para proporcionar aos cidadãos o direito de exercer a sua responsabilidade perante o Estado”, ressalta Ribeiro.
Mesmo com o recrudescimento da extrema direita em diversos países, inclusive no Brasil, os autores são otimistas quanto à possibilidade de instauração no País de regimes semelhantes ao fascismo que contaminou a Europa na primeira metade do século 20. “A capacidade de reação da sociedade e das instituições, atualmente, é muito grande”, afirma Almeida, referindo-se a ações antidemocráticas eventualmente cometidas por políticos que se identifiquem com os extremos políticos. “As pessoas estão cada vez menos propensas à obediência cega. Isso dificulta o estabelecimento de um regime fascista, que depende da aceitação incondicional de uma autoridade”, completa o cientista político.
Segundo Ribeiro, a história mostra como a instauração de regimes autoritários está ligada ao desamparo à população. O fascismo e o nazismo, explica o filósofo, prosperaram após o fim da Primeira Guerra Mundial, com a Europa arrasada e a população desesperançosa diante da falta de perspectivas políticas e econômicas. “Os grandes males da política estão ligados à falta de esperança no futuro”, explica.