Educação cidadã, ferramenta de transformação

19 de agosto de 2024

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Não existe um país pior do que o Brasil quando o assunto é identificar fake news — tão utilizadas e disseminadas nas últimas três eleições e que devem acompanhar as campanhas municipais em 2024. A conclusão é de uma pesquisa da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), realizada neste ano. Segundo o órgão, os brasileiros conseguem identificar apenas 60% de informações falsas. Isso significa que a cada 100 notícias mentirosas, 40 são julgadas verdadeiras pela população.

Para o estudo, os pesquisadores reuniram cerca de 2 mil pessoas em cada uma das 21 nações analisadas (Brasil e Colômbia eram os únicos representantes latinos). Numa espécie de jogo, os participantes precisavam identificar as notícias falsas. Resultado: o País se saiu pior do que os outros da amostra. Não soa estranho quando avaliamos os dados obtidos pelo DataSenado, em 2022, que comprovam que falta educação política no Brasil. Dentre os entrevistados, 47% disseram não se interessar pelo assunto por estarem desiludidos e/ou por desconhecer o sistema político. De acordo com eles, o próprio sistema deficiente de ensino não transmite as informações de forma clara, enquanto os atores políticos alienam a população.

“A informação nos tira o véu da ignorância e impede que sejamos ludibriados pela classe política. Ela se utiliza disso, pois sabe como usar da manipulação”, afirma a cientista social Maria do Socorro Braga, professora de Ciências Políticas na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). “A educação política, quando feita de forma plural e suprapartidária, traz os elementos para compreender esse sistema eleitoral e os partidos. Como funciona o voto? Por que a democracia é importante? Quais são as instituições públicas? Quais são os cargos que nos representam? Assim, é possível desenvolver um aspecto racional das coisas, do voto, associando-o às questões instrumentais da democracia”, complementa o empreendedor social Gabriel Marmentini, diretor-executivo da Politize!.  

A Organização da Sociedade Civi (OSC) é uma das iniciativas nacionais que tentam melhorar o nível de educação política no País. Recentemente, a Politize! expandiu os escritórios para México, Colômbia e Argentina. “A nossa gênese é associada à produção de conteúdo online. Há nove anos atuando no Brasil, já atingimos mais de 113 milhões de pessoas, ou seja, mais da metade da população brasileira acessou o nosso site pelo menos uma vez na vida. E entendemos que era hora de fazer a mesma coisa em outros países da América Latina”, explica Marmentini.

É um desafio e tanto a todos os atores interessados no desenvolvimento da educação política. A polarização acirrada nos últimos oito anos dificultou ainda mais o diálogo e aumentou a irritação com as discussões sobre o tema. “Existem também questões antropológica e sociológica por trás disso. As pessoas associam, há muito tempo, a palavra ‘política’ a conflito, violência, corrupção. É um desafio penetrar nesses modelos mentais e mudá-los para que percebam a política como ferramenta de transformação social”, defende Marmentini. 

Segundo o diretor da Politize!, a população está realmente dividida, sem disposição para o diálogo, o que impede a compreensão da divergência de pensamento — fato absolutamente natural na sociedade. “A divisão em grupos é normal, faz parte, mas a grande questão é não haver diálogo. Isso desafia a educação cidadã”, explica Marmentini. Em média, ainda segundo a pesquisa do DataSenado, 15% das pessoas deixaram de falar com amigos ou parentes em decorrência das eleições de 2022. 

Assim, diante da expansão das notícias falsas e do acirramento dos ânimos com a polarização, os debates se tornam ainda mais rasos, sem abordar os principais problemas nacionais, como a fome ou o desemprego. Isso torna ainda mais necessário o investimento em educação política.

Um problema público…

No início dos anos 2000, o governo parecia sinalizar interesse no desenvolvimento político da população. Em 2008, Filosofia e Sociologia ganharam status de disciplina obrigatória nas escolas. Em 2017, no entanto, o jogo virou mais uma vez. A aprovação do Novo Ensino Médio tornou obrigatórias apenas as aulas de Matemática e Português, relegando aquelas duas matérias a somente “estudos e práticas”, ao lado de Arte e Educação Física. As novas regras passaram a valer em 2022. 

No entanto, as mudanças não pararam por aí. Em 2024, os poderes Executivo e Legislativo voltaram atrás e aprovaram a reforma do Novo Ensino Médio. Com isso, as Ciências da Natureza e Humanas retomaram a condição de obrigatoriedade — e voltarão à grade curricular no próximo ano. “Estamos ainda muito distantes de ter, de fato, um ensino de qualidade na educação política. Os governos não investem. Pelo contrário, até dificultam ao excluir várias disciplinas da grade curricular, uma vez que Filosofia e Sociologia são áreas afins. Agora, tivemos outro desfecho”, afirma Maria do Socorro, da UFSCar. 

Não há ainda, no entanto, nenhuma disciplina que ensine crianças e adolescentes a respeito do funcionamento do sistema político. Segundo a cientista social, esse desconhecimento desvia o foco necessário das eleições no Legislativo, com atenção maior aos cargos do Executivo. “Os votos para o Congresso são pouquíssimos valorizados, decididos em cima da hora e esquecidos depois. Por quê? Porque parte das pessoas não entende o funcionamento das duas casas. Os dois poderes são concomitantes; não se governa sem maioria. Isso é importante e deve ser considerado”, reforça.

Para Maria do Socorro, as escolas deveriam ensinar logo cedo, na pré-escola, de forma empírica, sobre participação democrática em tomadas de decisão, o que estimula a consciência política das crianças. “Há as questões curriculares, claro, mas o professor pode estimular a criança a participar das decisões em certas atividades e fazer com que ela se sinta parte disso. É criar, desde pequeno, uma cultura política democrática. Isso aumenta as chances de que o indivíduo cresça e se preocupe em ler o projeto dos partidos antes de votar”, defende.

… E também privado

Desde 2018, as campanhas políticas não podem mais receber financiamento privado, mas nem tudo é sobre apoio direto aos candidatos. O Instituto Ethos lançou, em 2022, uma cartilha para alertar acerca da responsabilidade social das empresas com as eleições. De acordo com a entidade, uma das melhores maneiras de estimular o voto consciente é oferecer cursos de capacitação diversos e plurais aos funcionários.

“As empresas precisam fazer isso de uma forma transparente e plural, com os contraditórios, em cursos que tragam a possibilidade de as pessoas acessarem os conceitos fundamentais da democracia, como o que é um partido político, o que é uma eleição, como funciona o voto secreto etc. Parece simples, mas é muito interessante do ponto de vista da educação política”, explica o sociólogo Caio Magri, diretor-presidente do Instituto Ethos. “A divulgação dessas informações em suas redes, assim como postagens para alertar sobre notícias falsas, também são importantes. As empresas têm um papel fundamental no fortalecimento da democracia e do processo eleitoral.” 

O problema é que, segundo Marmentini, da Politize!, existe uma resistência das empresas na abordagem desses temas. “A educação política não é vista como prioridade por receio de esses negócios serem conectados a determinados partidos ou ideologias. Somos uma organização associada à política, mas suprapartidária, sem qualquer escândalo que fira nossa reputação. Ainda assim, é difícil penetrar nas companhias e fazer com que vejam a educação política como uma bandeira a ser abraçada”, explica. Para o diretor da Politize!, ainda há uma visão muito limitada, com pouco recurso investido. “É preciso que as empresas entendam que esse campo não é importante apenas em ano de eleição ou quando surge uma ameaça democrática. É uma agenda que deveria ser perene, com investimentos constantes e consistentes”, finaliza Marmentini.

Carol Castro Débora Faria
Carol Castro Débora Faria