Nativos da IA

17 de abril de 2025

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Não é um aparelho, nem sequer uma tecnologia única e específica: a invisível Inteligência Artificial (IA), que já está transformando o mundo, vai moldar o futuro das próximas gerações. Enquanto pessoas de diferentes idades acompanham esse processo e podem distinguir um antes e um depois, aqueles que nascerem a partir de 2025 — batizados de geração beta — conhecerão somente o mundo da IA massificada.

Nascer cercado por assistentes virtuais, seja em brinquedos inteligentes, seja em sistemas automatizados no dia a dia, vai afetar as formas dessa geração de interagir, aprender, consumir e obter informação. E é bem provável que será com esses assistentes a primeira e a última interações das pessoas a cada dia. Fato é que as facilidades da IA vão trazer oportunidades para melhorar a qualidade de vida, mas a tecnologia não está isenta de ameaças. Cabe aos adultos de carne e osso orientarem para usos que aprimorem a experiência humana de quem está chegando agora.

Cercadinho digital

Um dos riscos é o de que as pessoas fiquem presas em perímetros de dados e acreditem que estejam tendo acesso ao mundo inteiro, alerta a advogada Patrícia Peck, especialista em Direito Digital. Esse perigo existe porque cada sistema de IA usa um certo recorte de dados, que carregam vieses, embora contenham quantidades imensas de informações. Além disso, o algoritmo quer sempre agradar. “A IA tenta dar a resposta que você quer ouvir. A tendência é que se criem bolhas de dados ainda mais restritos do que as que temos atualmente nas redes sociais, o que pode cercear o livre-arbítrio, com direcionamentos e opções limitadas”, opina.

Assim como os cercadinhos usados para que os bebês não se machuquem enquanto os adultos cumprem outras tarefas, o perímetro de dados pode significar um confinamento, mas invisível, numa falsa ilusão de acesso irrestrito a todo tipo de dado ou informação. “O que move o ser humano é tentar ir além, ver o horizonte e querer saber o que há depois, atravessar o oceano. Ver a lua e desejar chegar lá. Vamos conseguir formar uma geração capaz de olhar além do cercadinho?”, questiona Patrícia. 

Segundo a especialista, é possível, sim, olhar além. Para isso, no entanto, teremos de reconhecer os limites que nos cercam e aprender formas práticas de driblá-los. “Temos sempre de provocar: e se você perguntasse de forma diferente, seria outra a resposta? E se, ao perguntar, estiver logado com o perfil de uma outra pessoa? Nas escolas e em outros grupos, podem ser realizadas experiências de comparar o que aparece para cada um”, sugere.

Outro desafio para quem vive a transição — e tem a responsabilidade de educar quem está nascendo a partir de agora — é preservar a gentileza na convivência entre humanos. “Essa geração talvez possa preferir a interação com a IA a conviver com outro humano. A IA está sempre à disposição, dá respostas imediatas, é sempre simpática, não se abala emocionalmente se formos mal-educados com ela”, elenca a advogada. O fenômeno das faltas de tolerância e diálogo, que já tem sido apontado como um problema atual, pode, portanto, se intensificar.

Apenas a interferência humana será capaz de evitar esse cenário. “Pais, escolas, empregadores — todos temos a responsabilidade de orientar para um uso ético, seguro e saudável de qualquer tecnologia”, ressalta Patrícia. Não se trata, portanto, de ensinamentos técnicos, mas de incentivar a visão crítica.

Domínio dos ‘prompts’

Adotar o ano de 2025 como marco do início da geração beta foi uma proposta do demógrafo australiano Mark McCrindle, que a designou como beta por ser a letra do alfabeto grego que vem depois do alfa, nome dado à geração anterior, dos nascidos entre 2012 e 2024. Segundo Beia Carvalho, fundadora e CEO do centro de estudos 5 Years From Now, a disrupção provocada pela IA justifica que seja sugerida uma nova geração. Assim que aprenderem a falar, os betas vão conversar com sistemas inteligentes, ou melhor, vão criar prompts, os comandos dados às máquinas.

Embora não haja um órgão oficial que determine quais são as gerações, essas ideias de divisão das pessoas de acordo com a data de nascimento vão sendo consolidadas pela prática. “Se você chega ao mundo no meio de uma guerra mundial, com fome, miséria, abusos, não tem como não ser afetado por essa situação”, pondera Beia. No entanto, é claro que se trata de generalizações, já que não é possível dividir a população mundial toda em um padrão que considera apenas o ano de nascimento, descartando fatores fundamentais como o lugar e o contexto social em que vivem. “As características das gerações não se limitam a diferenças locais ou status social”, explica, citando a Primavera Árabe, de 2010 — uma revolução promovida por uma faixa jovem da população, organizada por meio do celular. “Não foi preciso ter um iPhone mais moderno, bastou um aparelho como parte do seu mundo”, pontua.

Ainda é cedo, portanto, para prever como a geração da IA vai se desenvolver, mas Beia acredita não haver dúvidas de que essa tecnologia vai trazer benefícios em três áreas centrais do mundo globalizado: Saúde, como na análise de exames; Educação, para personalização do ensino; e Segurança, que já ajuda a encontrar foragidos na rua. Contudo, a CEO acredita que os perigos são imensos e a sociedade não se mostra preparada para lidar com eles. “O ‘lado negro da força’ surgiu bem antes do tiro de largada. Enquanto ainda vemos tudo igual no médico ou nas escolas, os deepfakes já têm causado estragos”, adverte. Deepfake é o nome dado à manipulação de fotos, vídeos ou áudios com o uso da IA, de forma a ser quase impossível reconhecer que se trata de uma mentira.

O cenário também preocupa porque são tecnologias de alta complexidade, que estão nas mãos de pouquíssimos grupos empresariais, ao mesmo tempo que a maioria população desconhece o tema. “A IA não é uma coisa em si, mas estará ao lado de outras. Vamos poder comprar um ursinho com a ferramenta, que contará histórias para as crianças, mas provavelmente não saberemos quem a treinou, com que dados e com que qualidade”, exemplifica Beia.

Educação artificial

A dificuldade que as pessoas comuns têm para avaliar a qualidade do que é oferecido pelas ferramentas de IA generativa é uma preocupação central na Educação. “Em breve, tudo vai estar integrado à IA, mas a qualidade será questionável. Se for para criar uma imagem, ela poderá inventar algo ruim. Mas poderá também inventar um curso ruim e o aluno não terá como saber disso”, afirma o professor Marcel Costa, fundador da IntegralMind, empresa de ensino personalizado.

Outro risco que bate à porta de quem for educado no mundo dessa tecnologia é o sedentarismo intelectual, pois terceirizar certas habilidades às máquinas pode se traduzir num desestímulo para pensar. Costa compara o fenômeno ao que as calculadoras fizeram com a habilidade de cálculo mental das pessoas. “A maior parte da geração da minha mãe sabe fazer contas de cabeça. Alguém com 30 anos ou menos não sabe. É uma perda”, detalha. Mas nem tudo é negativo, claro. “Na faculdade de Engenharia, aprendiam-se coisas como tirar a raiz quadrada de 17 sobre Pi. Havia cálculos que levavam uma semana e, hoje, são processados em segundos”, aponta.

Nessa conjuntura, Costa enfatiza que o educador se tornará cada vez mais imprescindível. De expositor de conteúdos que, de outra forma, eram pouco acessíveis, o professor passa a ser um curador no mundo da hiperinformação. A partir do momento que a IA se tornar capaz de selecionar e organizar caminhos de aprendizagem, o profissional assumirá o papel de motivador. “O professor tem conhecimento do objetivo da aprendizagem, sabe avaliar se a proposta da IA faz sentido e inclui o lado emocional ao entender como o estudante responde à pressão, se tem traumas ou em que momentos deve ser firme ou flexível”, observa.

A geração beta precisará, sobretudo, ser orientada por pessoas com literacia digital e em IA para que possam auxiliá-las a lidarem com questões complexas, como desinformação, privacidade online e cidadania. Incentivar a autonomia, capacitando as crianças a criarem, avaliarem criticamente e agirem de forma intencional, é fundamental diante do predomínio do consumo passivo e das decisões baseadas em algoritmos. E, apesar das diferenças, há algo que iguala as pessoas de todas as idades: a necessidade de conexões humanas autênticas.

Luciana Alvarez Annima Mattos
Luciana Alvarez Annima Mattos